Oportunidades e desafios diante de um contexto em transformação
A integração energética regional é um tema muito debatido na América Latina, com alguns stakeholders apontando para um enorme potencial inexplorado, enquanto outros mostram-se notadamente céticos. De modo a fomentar o debate e a promoção do conhecimento acerca do tema, o Núcleo Energia do CEBRI e a KAS-EKLA selaram parceria para explorar o tema. Tal discussão beneficiou-se de debate promovido em 03 de setembro de 2020, o qual contou com a participação de Décio Oddone, ex-Diretor Geral da Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis – ANP e com ampla experiência em diferentes países da região, Thiago Barral, presidente da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, e Marta Jara – membro do Conselho Consultivo do Latin American Program do Wilson Center. Ainda, o debate incluiu comentários de Jorge Camargo, vice-presidente do Conselho Curador do CEBRI, e Nicole Stopfer, Diretora da KAS-EKLA, além de moderação por Clarissa Lins, Senior Fellow do CEBRI e sócia fundadora da Catavento.
O estudo elaborado pela Catavento de modo a consolidar e aprofundar pontos discutidos no evento pode ser baixado aqui. Por meio da análise de publicações técnicas, dados e fatos, buscou-se avaliar as experiências passadas da região no tocante à integração energética, refletir sobre lições aprendidas e analisar o potencial futuro de maior integração à luz do futuro da energia que se desdobra a partir de macrotendências globais. Destacamos abaixo alguns key takeaways:
A América Latina tem hoje um setor energético pujante, com amplo potencial de expansão. Em 2018, a oferta primária de energia na região totalizou 841 Mtoe, com uma geração elétrica de 1617 TWh[1]. Ainda, há amplas reservas de combustíveis fósseis, abrigando 18,7% das reservas globais provadas de petróleo, notadamente a Venezuela (17,5% das reservas globais[2]) e o Brasil (12,7 bilhões de barris), e 4% das reservas globais de gás natural[3]. Ainda, no contexto da transição energética, a região já conta com alta participação de fontes renováveis, especialmente hídrica com destaque para o Brasil, além de vasto potencial para renováveis como solar, eólica e biocombustíveis. Os recursos energéticos estão, todavia, distribuídos de forma desigual ao longo do continente, o que torna pertinente o debate sobre complementariedade e maior integração regional.
O racional por trás da integração energética elenca como potenciais efeitos positivos a promoção da segurança energética, maior eficiência sistêmica, modicidade de custos, ampliação de mercados e impactos socioambientais positivos. Dito isso, pode-se classificar o processo de integração em diferentes estágios de maturidade[4], ficando claro que a efetiva integração regional não estaria limitada à existência, por exemplo, de uma linha de transmissão entre dois países. Inicialmente, interconexões são utilizadas de modo a viabilizar a oferta variável de eletricidade entre os países envolvidos, potencialmente evoluindo para a contratação de energia firme entre os países, com a assinatura de contratos bilaterais ou mesmo construção de usinas binacionais. A fase final é caracterizada pelo acoplamento dos mercados, o que requer a harmonização regulatória no que tange aos volumes de energia comercializados e à formação do preço, assim como um planejamento energético compartilhado[5].
O histórico de integração energética na América Latina foi marcado por grandes expectativas, seguidas de resultados não raro frustrantes, tanto no setor elétrico, como no de gás natural. A análise de tal contexto histórico permite traçar algumas lições aprendidas, tais como: (i) a necessidade de um ambiente político-econômico estável, (ii) a importância da harmonização regulatória entre os países, além de um framework institucional e de governança sólido, (iii) e o reconheciento da fragilidade de agentes privados diante de projetos de integração energética, devido à importância dos entes governamentais para a efetiva rentabilidade destes.
Ainda, a partir do contexto histórico traçado e das lições aprendidas, há que se refletir de que forma uma discussão sobre integração energética regional na América Latina está inserida no contexto de macrotendências que redesenham o futuro da energia[1]. No presente estudo, o fazemos a partir da ótica de 4 transformações em curso no setor energético: (i) mudanças climáticas, (ii) transição energética e maior penetração de novas renováveis, (iii) novas tecnologias e digitalização e (iv) a nova orientação geopolítica. Abaixo busca-se resumir de que forma cada uma dessas macrotendências impactam o setor energético e incentivam a integração regional:
Mudanças climáticas – Integração poderia prover segurança energética e diversificação de fontes, diante de busca por resiliência a riscos físicos;
Transição energética – Em um cenário de maior participação de fontes renováveis intermitentes, a integração poderia prover flexibilidade ao sistema por meio da complementariedade;
Digitalização e geração distribuída – Ao promover maior segurança e descentralização, a integração regional pode ser desaforecida, diante da valorização de projetos locais, com menor incentivo à construção de grandes projetos intercontinentais;
Geopolítica em turbulência – Um ambiente de desconfiança e priorização dos interesses nacionais não incentivaria a integração regional.
O estudo explora, ainda, o potencial brasileiro para liderar um processo de integração regional. O país representa atualmente 43% da oferta primária de energia da América Central e do Sul (285 Mtoe), e 45% da geração de eletricidade no continente (593 TWh)[6]. Diante de tal relevância, qualquer processo efetivo de integração regional depende fundamentalmente do engajamento brasileiro[7]. O país tem fronteira com 10 dos 12 países da América do Sul, possui boas relações comerciais e diplomáticas com a maioria dos vizinhos, instituições sólidas no setor energético e experiência na construção, planejamento e operação de sistemas energéticos de longa distância[8].
Por outro lado, qual seria o efetivo interesse do Brasil em promover a integração energética? O país, por meio do alto nível de diversidade de fontes energéticas desigualmente espalhadas pelo território, já conta com benefícios de diversificação de fontes e complementariedade dentro dos limites nacionais. Ainda, as barreiras físicas que separam o Brasil de seus vizinhos, como a Floresta Amazônica e a Cordilheira dos Andes, além de grande distância entre as fronteiras e os centros de consumo energético no Sudeste são barreiras adicionais que poderiam gerar um aumento expressivo nos custos de projetos de integração[9]. Nesse cenário, apesar de ser um ator chave para a efetiva integração energética na América Latina, o Brasil não parece contar com os adequados incentivos para exercer tal liderança.
Finalmente, as autoras concluem que integração energética deve significar complementariedade e não dependência. A história dá ao continente latino-americano lições para evitar cometer os mesmos erros do passado. Na busca por reconstruir a confiança perdida e em meio a um setor energético em transição, há de se refletir sobre os reais incentivos que países têm a promover a integração. Em comparação com o cenário dos anos 80 e 90, ou mesmo dos desafios enfrentados nos anos 2000, tem-se hoje um novo mundo que se abre, e é preciso estar preparado para olhar a integração regional sob a ótica do futuro da energia. Muito da lógica da integração energética na América Latina, com grandes projetos de infraestrutura, hidrelétricas, gasodutos, parece pertencer ao passado.
Nesse contexto, e após o exposto ao longo do estudo, fica evidente que as oportunidades de maior integração são marginais no setor elétrico, limitadas às regiões de fronteira, mas existentes diante dos potenciais ganhos de flexibilidade e segurança energética. Já no setor de gás natural, são certamente mais tímidas, principalmente tendo em vista a transição para uma economia de baixo carbono, a competição com as reservas nacionais e com o GNL comercializado globalmente.
Uma condição necessária, embora não suficiente, seria começar por restabelecer os elos de confiança entre os países, duramente abalados por episódios intervencionistas. E, ainda a verificar, os estímulos de eficiência trazidos pela integração em um contexto energético rumo a um futuro descentralizado, descarbonizado e digital.
Para baixar a versão completa do estudo, clique aqui.
[1] IEA. World Energy Outlook 2019. 2019
[2] Apesar de tais serem os números oficiais, há questionamentos sobre a veracidade dos dados de reservas e produção reportados pela Venezuela.
[3] BP – Statistical Review of World Energy: Oil – total proved reserves; Natural gas – total proved reserves. 2020
[4] FGV ENERGIA. O setor elétrico brasileiro e a integração elétrica regional. 2016
[5] FGV ENERGIA. O setor elétrico brasileiro e a integração elétrica regional. 2016
[6] IEA. World Energy Outlook. 2019
[7] BARRAL, Thiago. South American Internal Electricity Market – SAIEM: Proposals and policy recommendations Perspective of the Brazilian Ministry of Mines and Energy. 2016
[8] KAS, GESEL. Biato et al. Constraints and Perspectives of the Energy Integration in South America. 2017
[9] BARRAL, Thiago. South American Internal Electricity Market – SAIEM: Proposals and policy recommendations Perspective of the Brazilian Ministry of Mines and Energy. 2016
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